O comércio eletrónico está a entrar numa nova fase. Depois da digitalização das lojas e da ascensão dos marketplaces, começa agora a ganhar forma uma terceira etapa: o agentic commerce. Nesta nova era, deixamos de ser nós a comparar preços, abrir dezenas de separadores e preencher formulários. Em vez disso, delegamos estas tarefas a agentes de inteligência artificial que compreendem o contexto, tomam decisões de compra e executam ações em nosso nome.
Este artigo baseia-se no estudo “The Agentic Commerce Opportunity: How AI Agents Are Ushering in a New Era for Consumers and Merchants”, que analisa de forma detalhada como estes agentes de IA podem mediar milhares de milhões de dólares em transações até 2030 e o que isso significa para consumidores, marcas e retalhistas online.
Isto muda tudo para consumidores e lojas online. Se, até agora, o SEO servia sobretudo para “agradar” a motores de busca usados por pessoas, num cenário de agentic commerce as marcas terão também de se tornar “legíveis” para agentes de IA. Isso significa dados bem estruturados, APIs abertas, políticas transparentes e uma estratégia clara para ser escolhida por assistentes digitais que vão filtrar, negociar e montar carrinhos de compras de forma autónoma.
Este artigo explica, de forma prática, o que é o agentic commerce, como funcionam os agentes de IA na jornada de compra, quais os impactos na tecnologia, no modelo de negócio e na confiança dos consumidores, e o que as lojas online podem começar a fazer hoje para se prepararem. Se trabalha com e-commerce, marketing digital ou produto, este não é um tema futurista: é uma mudança que já começou e que será fundamental para continuar a vender nos próximos anos.
1) O que é agentic commerce?
Agentic commerce é uma nova forma de comprar e vender em que agentes de IA tomam decisões e executam ações em nome do consumidor: procuram opções, comparam preços, negociam condições, enchem o carrinho, pagam, acompanham entregas e até tratam de devoluções – sempre alinhados com regras e limites definidos pelo utilizador.
Em vez do consumidor ter de saltar entre lojas, marketplaces e apps, a experiência passa a ser orientada por “assistentes digitais” que gerem cadeias de tarefas complexas (reasoning + múltiplos passos) e entregam um resultado: “Aqui estão as três melhores opções para o que pediste – queres que eu trate do resto?”
É muito mais do que “mais um chatbot”:
- o agente percebe o contexto (calendário, histórico de compras, localização, preferências),
- planifica o que é preciso fazer,
- chama APIs, sites e outros agentes,
- executa compras e regista tudo.
2) Porque é que isto é tão importante para o e-commerce?
Segundo o estudo, até 2030 os agentes de IA podem orquestrar entre 3 e 5 biliões de dólares em receitas de comércio a nível mundial, só no retalho B2C. Nos EUA, fala-se em 900 mil milhões a 1 bilião de dólares em vendas mediadas por agentes.
Ao mesmo tempo:
- Em 1999 havia ~100 milhões de utilizadores de internet; em 2025 são cerca de 5,6 mil milhões (68 % da população mundial).
- Em inquéritos recentes, cerca de metade dos consumidores que testaram pesquisa com IA já prefere esse modelo a motores de busca tradicionais.
Ou seja:
- A base de utilizadores é gigantesca.
- A pesquisa orientada por IA está a tornar-se o novo “portão de entrada” da internet.
- Quem vender online e não estiver preparado para falar com agentes (e não só com pessoas) corre o risco de desaparecer do radar.
3) Como funcionam os agentes de IA na prática?
O artigo descreve um percurso típico num mundo de agentic commerce:

- O agente deteta uma necessidade (ex.: viagem, mudança de casa, reposição de consumíveis).
- Pesquisa produtos/serviços em múltiplos sites com base em contexto real (orçamento, preferências, prazos de entrega, avaliações).
- Procura melhores preços ou descontos e pode negociar diretamente com sites ou outros agentes.
- Filtra e apresenta poucas opções para aprovação do utilizador.
- Preenche automaticamente dados de entrega, fidelização e pagamento.
- Acompanha a entrega e atualiza o cliente.
- Se algo correr mal, abre tickets, marca recolhas, segue devoluções e confirma reembolsos.
O estudo identifica três modelos principais de interação:
- Agent-to-site (agente → site)
- O agente comporta-se como um “super-utilizador” que navega e compra numa loja normal, via API ou até simulando rato e teclado.
- Agent-to-agent (agente → agente)
- O agente do consumidor fala com o agente da marca/retalhista (ex.: negociar um bundle de produtos, gerir upgrades, escolher o melhor método de envio).
- Brokered agent-to-site (agente → agente intermediário → vários sites)
- Um “agente corretor” (tipo uma nova versão de um marketplace ou comparador) distribui o pedido por vários comerciantes, aplica pontos de fidelização e monta o melhor carrinho multi-lojas.
4) Infraestrutura técnica: o que as lojas têm de preparar?
O capítulo 2 mostra que o agentic commerce não é magia: depende de uma nova camada de protocolos, APIs e padrões de interoperabilidade.
4.1) Protocolos que vão suportar os agentes
O Model Context Protocol (MCP) funciona como “cola” entre modelos de linguagem, ferramentas e plataformas:
- MCP traduz o pedido do utilizador (“marca uma viagem para Hamburgo”) em chamadas estruturadas a múltiplas APIs (companhias aéreas, hotéis, apps de reviews, restaurantes).
- Os resultados voltam com contexto rico, e o modelo compõe a resposta em linguagem natural.
Outros elementos técnicos chave:
- Agent-to-Agent Protocol (A2A) – permite que agentes de fornecedores diferentes conversem, descubram capacidades uns dos outros e cooperem em tempo real.
- Agent Payments Protocol (AP2) – padrão aberto para agentes fazerem pagamentos com segurança, usando mandatos criptograficamente assinados que ligam intenção, carrinho e identidade.
- Computer-use agents – agentes capazes de “usar o computador” como uma pessoa (mouse, teclado, formulários) quando não existem APIs.
- Personalização contextual – arquiteturas de memória que guardam preferências, histórico e contexto para recomendações em tempo real.
- Planeamento dinâmico – agentes que replaneiam rotas, stocks, reservas e despesas se algo mudar (voo atrasado, produto esgotado, etc.).
4.2) Ecossistema de agentic commerce
O estudo identifica ainda dois grandes blocos:
- Camada core: plataformas de agentes, infraestrutura de pagamentos e motores de orquestração.
- Adaptadores e facilitadores:
- plataformas de e-commerce,
- motores de fraude,
- sistemas de reviews,
- PIM (Product Information Management),
- CRM,
- logística e inventário,
- analytics,
- personalização e pesquisa interna.
Conclusão: mesmo uma PME terá de expor APIs bem desenhadas, dados de produto estruturados e regras de negócio claras para que os agentes a consigam “entender” e trabalhar com ela.
5) Como os modelos de negócio vão evoluir
O artigo recupera a ideia de “destruição criativa” de Schumpeter: novos modelos destroem os antigos enquanto abrem espaço para formas diferentes de criar valor.
Com agentes, o “cliente” direto da sua loja pode deixar de ser um ser humano com browser e passar a ser um agente autónomo. Isso tem implicações profundas em seis domínios:
5.1) Áreas onde é preciso inovar
- Descoberta e envolvimento
- Criar experiências agent-first: catálogos com metadados semânticos, APIs que aceitam pedidos em linguagem natural estruturada (“cadeiras de madeira clara para mesa de 6 lugares até 350€”) e respostas em formato legível por máquinas.
- Clienteling e fidelização
- Programas de fidelização acessíveis via API (saldo de pontos, elegibilidade de ofertas, upgrades).
- Camadas de contexto que permitam ao agente saber quando faz sentido reativar o cliente (antes de acabar uma cápsula de café, antes de uma viagem, etc.).
- Experiências tipo concierge
- Agentes da marca que entendem intenções complexas (“vou mudar-me para Lisboa com duas crianças pequenas”) e constroem bundles multi-categoria (móveis, escola, serviços, seguros).
5.2) Áreas onde é preciso “renovar” o que já existe
- Plataforma de e-commerce
- Checkout com endpoints claros para agentes (criação de carrinho, cálculo de portes, impostos, opções de entrega, políticas de devolução).
- Pricing dinâmico, recomendações baseadas em inventário e margens.
- Pagamentos e fraude
- Passar de “detetar bots” para validar agentes autorizados a gastar em nome de pessoas.
- Integrar protocolos como AP2, cartões tokenizados e novas camadas de autenticação.
- Fulfillment, loja física e devoluções
- APIs de stock em tempo real, regras de envio e devolução claras e legíveis por máquinas.
- Handoffs suaves entre agente digital e colaborador em loja (ex.: o agente envia a lista de produtos e preferências antes do cliente chegar).
6) Novas formas de gerar receita (e ameaças ao modelo atual)
Com agentes a filtrarem opções, muitos modelos baseados em publicidade e retail media podem perder força: o agente não vai “clicar em banners”, mas sim procurar a melhor solução para o utilizador.
O artigo sugere várias vias de monetização alternativas:
- Bundles multimarcas com partilha de receita – o agente monta um pacote (viagem + hotel + experiências) e a plataforma cobra uma taxa de coordenação.
- Taxas de negociação em tempo real – paga-se por upgrades, combinações especiais ou otimização de preço em nome do cliente.
- Agentes verticais premium – “consultores de moda”, “planificadores de viagens de luxo” ou “nutricionistas digitais” com subscrição mensal.
- Venda de insights de dados (anonimizados) – estatísticas sobre o que os agentes consideraram e rejeitaram, sensibilidade ao preço, comparação com concorrentes.
- Marketplaces conversacionais – verdadeiros “shopping centers em chat”, onde a monetização vem de comissões, listagens pagas e serviços de pagamento/seguro.
- Sugestões patrocinadas, mas transparentes – recomendações assinaladas como patrocinadas, desde que o agente preserve a confiança do utilizador.
7) Confiança e risco: sem confiança não há agentic commerce
O capítulo 4 do estudo é claro quando refere que: a confiança deixa de ser só um fator emocional e passa a ser infraestrutura.
São apresentadas cinco dimensões de confiança:
- Conhecer o teu agente (KYA – Know Your Agent)
- Verificar identidade do agente (à semelhança do KYC para pessoas).
- Exigir multifator para ações sensíveis.
- Manter registos auditáveis de transações.
- Colocar as pessoas no centro
- Preferências controladas pelo utilizador.
- Possibilidade de override humano em decisões críticas.
- Tom comunicativo ético e empático.
- Transparência
- Explicar recomendações.
- Mostrar preços, alternativas e limitações (“só comparamos fornecedores certificados”).
- Segurança e proteção de dados
- Encriptação de ponta a ponta.
- Minimizar partilha de dados e cumprir normas (ex.: RGPD, ISO 27001).
- Governação responsável
- Definir claramente responsabilidade em caso de erros.
- Cumprir regras de consumo, devoluções, reembolsos, etc.
Além disso, o relatório destaca três áreas de risco:
- Risco sistémico – pequenos erros podem escalar rapidamente em cadeias de agentes interligados.
- Responsabilidade legal pouco clara – quem responde por um erro do agente? O fornecedor do modelo, a marca, o utilizador?
- Soberania de dados – diferentes países impõem limites à circulação de dados; modelos globais precisam de se adaptar a legislações locais.
A mensagem é simples: não há adoção em massa sem confiança, explicabilidade e capacidade de reverter decisões dos agentes.
8) O que as lojas online podem começar a fazer hoje
Com base nas perguntas do capítulo 5, podemos sintetizar um roteiro prático para os próximos 12–24 meses:
- Fazer um diagnóstico “agent-ready”
- Como está o catálogo (dados, atributos, imagens, reviews)?
- Existem APIs documentadas para carrinhos, pagamentos, stock, portes, devoluções?
- Como é a qualidade dos dados de clientes e de fidelização?
- Definir onde inovar primeiro
- Um agente de apoio ao cliente capaz de resolver casos ponta-a-ponta?
- Um “personal shopper digital” para produtos complexos (ex.: cosmética, tecnologia, bebé)?
- Automatizar tarefas internas (planeamento de inventário, previsão de procura)?
- Rever a estratégia de parcerias
- Que plataformas de IA, PSPs, ERPs, CRMs e CDPs fazem sentido integrar?
- Onde faz sentido desenvolver internamente e onde é melhor ligar-se a soluções existentes?
- Desenhar políticas de confiança e consentimento
- Que limites de gasto podem ser delegados ao agente?
- Como o utilizador ativa, ajusta e desativa esses limites?
- Como será apresentada informação sobre decisões do agente?
- Formar equipas e mudar a cultura de trabalho
- Deixar de ter “o departamento da IA” isolado e passar a integrar IA em equipas de produto, marketing, operações e atendimento.
- Criar rotinas de experimentação controlada (pilotos com métricas claras).
9) Conclusão: o futuro do e-commerce será agentic (quer queiramos, quer não)
O relatório é explícito: a transição para um mundo em que agentes de IA mediam uma parte significativa das compras não é ficção científica, é uma trajetória já em curso.
Para as marcas e lojas online, isto implica:
- repensar o SEO clássico e começar a pensar em “agent experience” (AX);
- expor dados e lógica de negócio de forma estruturada e acessível a agentes;
- criar modelos de confiança e governação que convençam consumidores, reguladores e parceiros;
- aceitar que alguns modelos de receita vão encolher, enquanto outros – ainda pouco explorados – podem crescer muito.
Quem se mexer agora, mesmo em pequenos pilotos, terá uma vantagem clara quando os agentes de IA passarem a ser o “novo browser” das compras online.
Perguntas frequentes sobre agentic commerce
1. O que é agentic commerce em linguagem simples?
É uma forma de comércio em que um assistente de IA faz por ti o que hoje fazes manualmente: procura, compara, escolhe, compra, paga, acompanha a entrega e trata de devoluções, seguindo as regras que definires.
2. Em que é que o agentic commerce é diferente do e-commerce tradicional?
No e-commerce tradicional és tu que clicas em tudo. No agentic commerce, delegas grande parte dessas ações a um agente de IA que opera entre ti e as lojas, falando com sites, APIs e outros agentes em teu nome.
3. Os agentes de IA vão acabar com o SEO?
Não, mas vão mudar o foco. Em vez de otimizar apenas para motores de busca humanos, as lojas têm de otimizar dados, APIs e regras de negócio para serem legíveis e atrativas para agentes. A visibilidade passa a depender da forma como o agente avalia relevância, preço, confiança e experiência global.
4. Como é que uma loja online pequena pode preparar-se?
Começa pelos básicos:
- limpar e enriquecer o catálogo de produtos;
- garantir descrições estruturadas (atributos, benefícios, limitações);
- implementar ou melhorar APIs para carrinho, stock e portes;
- testar um primeiro agente (ex.: atendimento automatizado com acesso real a dados).
5. É seguro deixar um agente de IA fazer compras por mim?
Depende das salvaguardas implementadas. O relatório defende uma abordagem de “Know Your Agent”, com autenticação forte, registos auditáveis, limites de gasto e possibilidade de override humano para decisões importantes.
6. Como é que os pagamentos vão funcionar com agentes?
Novos protocolos, como o AP2 da Google, permitem que agentes façam pagamentos com mandatos digitais assinados, ligando intenção, carrinho e método de pagamento de forma verificável e auditável. Grandes redes como Visa e Mastercard já estão a testar cartões “prontos para IA” com credenciais tokenizadas.
7. Que riscos principais as empresas devem considerar?
Os três grandes blocos de risco são:
- sistémico (erros que escalam rapidamente),
- responsabilidade legal (quem responde pelo quê)
- e soberania de dados (cumprimento de leis locais de proteção de dados).
Além disso, há o risco de comportamentos emergentes dos agentes, que exigem monitorização contínua e boas práticas de governação.
8. O agentic commerce é relevante para mercados com baixa penetração de pagamentos digitais?
Sim, mas a adoção será mais lenta. Em mercados com baixa confiança em pagamentos online, os agentes terão de respeitar normas locais, usar métodos de pagamento preferidos (transferências, BNPL, etc.) e oferecer maior controlo humano e transparência para ganhar confiança.
9. Que vantagem têm os primeiros a avançar?
Quem avançar cedo consegue:
- influenciar padrões de APIs e integrações;
- aprender mais rápido (e corrigir mais rápido);
- construir relações fortes com plataformas de IA e ecossistemas de pagamentos;
- experimentar novos modelos de monetização antes dos concorrentes.









